Entrevista do Instituto: conheça o Professor Visitante Wolney Unes
Publicado em 18 de setembro de 2025, no portal da Universidade de Liverpool
Clique aqui e leia a entrevista original em inglês.
Na estreia de uma nova série de entrevistas, conversamos com o Professor Visitante Wolney Unes, que compartilhou detalhes sobre sua trajetória, suas pesquisas em patrimônio cultural e seu trabalho mais recente sobre o legado do movimento Art Déco.
Um percurso de múltiplos interesses
“Comecei pela Engenharia, mas as artes sempre chamaram minha atenção — então o patrimônio arquitetônico acabou sendo o destino natural”, conta Wolney.
Para ele, o patrimônio construído faz muito mais sentido quando visto em conjunto com outros aspectos da vida, e não isoladamente. “Falo aqui de literatura, música e tantos outros elementos. Tudo isso, reunido, compõe os estudos culturais, que exigem uma abordagem necessariamente multidisciplinar — tanto material quanto imaterial.”
Compreender plenamente o significado de um patrimônio cultural, segundo o professor, requer um olhar atento ao percurso histórico do objeto e à sua relação com a comunidade — suas histórias, músicas, símbolos e representações.
Ele também destaca a importância de dar visibilidade a expressões culturais frequentemente ignoradas. “O Centro-Oeste brasileiro, por exemplo, tem uma cultura praticamente invisível. Temos tentado torná-la mais visível, contando sua história não apenas por meio dos edifícios, mas também do processo de ocupação, das comidas típicas, dos dialetos locais, da música e de muito mais.”
Formação e mestres inspiradores
Wolney iniciou seus estudos em Engenharia, seguiu para o mestrado em Arquitetura e concluiu o doutorado em Artes — entremeando esse percurso com estudos de música e literatura — em instituições como o Mozarteum (Áustria), a Universidade de Brasília e a Universidade de São Paulo.
Ele cita como mentores o saudoso Prof. Frank Svensson (história da arquitetura) e o Prof. Aguinaldo Gonçalves (crítica de arte), que o influenciaram profundamente e reforçaram em sua trajetória a importância da multidisciplinaridade.
Projetos atuais e o centenário do Art Déco
Atualmente, o professor está envolvido na organização de uma série de eventos sobre os 100 anos da Exposição Art Déco de Paris de 1925, marco histórico do estilo.
“O Art Déco é uma dessas peças esquecidas do nosso patrimônio — não apenas no Brasil, mas também no Reino Unido e na Europa em geral. O Modernismo acabou ofuscando esse período curto, porém extremamente emblemático da linguagem artística.”
A experiência em Liverpool, no Instituto do Patrimônio
“Percebi que os objetivos do Heritage Institute são muito semelhantes aos nossos: o patrimônio em risco. Eu diria que o Art Déco é um desses traços ameaçados da nossa história arquitetônica — não pela guerra, claro, mas por uma espécie de obnubilação, esquecimento e uma crítica negativa bastante forte, sobretudo vinda do movimento moderno.”
“No Brasil, até pouco tempo atrás, era chamado de ”Protomodernismo”, uma simples ramificação tardia e experimental da Beaux-Arts. Não, não — foi um estilo internacional plenamente desenvolvido, na verdade o primeiro movimento artístico a envolver o mundo inteiro!”
“Outra ameaça vem da própria academia: se você consultar a maioria dos compêndios de arte e arquitetura, talvez nem encontre uma única referência a ele, especialmente em estudos da Europa Central. É claro que, até alguns anos atrás, até mesmo o nome desse estilo era motivo de controvérsia — ”style moderne”, “zig-zag”, “jazz age” — são alguns dos títulos que já foram usados. Hoje, porém, o termo Art Déco tem se consolidado cada vez mais para defini-lo.”
Aspecto mais surpreendente da pesquisa
Wolney contou que, nos últimos anos, tem estado dedicado cada vez mais a estudar e falar sobre patrimônio cultural — especialmente aquelas peças esquecidas do nosso acervo.
“Diria que, neste momento, no Brasil, um dos maiores problemas é que muitos arquitetos que lidam com patrimônio construído não consideram as ligações entre o edifício e a intangibilidade de sua história. Muitas vezes, o foco é colocado apenas na materialidade da construção, e não tanto em seu uso, vivência, adaptações à vida contemporânea e — por que não — na reinterpretação do seu papel.
A interdisciplinaridade no trabalho e o patrimônio em um contexto global
“O patrimônio cultural é um tema importante demais para ser deixado apenas a um tipo de profissional. É fundamental ter uma equipe multidisciplinar, com especialistas de diversas áreas — da história à música, da literatura à arquitetura e ao marketing. Junto, esse grupo pode discutir quais aspectos devem estar em primeiro plano na abordagem de determinado objeto.”
Equilíbrio entre preservação e turismo
Questionado sobre exemplos bem-sucedidos de equilíbrio entre turismo e preservação — no Brasil e no Reino Unido —, Wolney observa que se tratam de contextos muito distintos.
“O turismo no Brasil é voltado principalmente para os grandes centros, centrado no sol e nas praias. Ainda há muito pouco turismo cultural.”
Segundo ele, sua equipe vem trabalhando para tornar comunidades menos conhecidas mais visíveis, por meio da valorização de seus bens culturais materiais e imateriais.
Em 2001, conseguiram incluir a cidade de Goiás (a cerca de 1.500 km do Rio de Janeiro, rumo ao interior) na Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO. Desde então, o grupo atua no fortalecimento da culinária local, dos poetas, escritores e músicos, além de ter criado um festival de cinema que já acontece há mais de 20 anos.
“É um trabalho árduo, de resultados lentos, e ainda muito poucas pessoas visitam a cidade”, comenta.
Ele observa que na Europa o problema é inverso: “Vemos cidades como Hallstatt (na Áustria) ou Barcelona tentando limitar o turismo. Talvez aí esteja a resposta — redistribuir o turismo entre mais destinos, reduzindo a concentração em pontos específicos.”
Impactos concretos e novos reconhecimentos
“Um dos resultados de que mais me orgulho é o fato de nosso trabalho ter aberto caminho para os processos de tombamento do patrimônio no Brasil”, afirma Wolney.
Em 2003, o grupo conseguiu que a cidade de Goiânia fosse reconhecida como patrimônio nacional de Art Déco — a primeira do tipo em todo o país.
Essa redescoberta levou a um novo olhar sobre diversos edifícios e monumentos que passaram a ser reclassificados. “O Cristo Redentor, no Rio de Janeiro — agora oficialmente reconhecido como o maior monumento Art Déco do mundo —, e o Elevador Lacerda, em Salvador, são exemplos disso.”
Reutilização e escuta arquitetônica
Outro eixo de trabalho de Wolney é a reutilização de edifícios históricos, em uma abordagem que rompe com a visão tradicional de que o arquiteto deve apenas preservar a materialidade original.
“Temos insistido que o ponto de partida deve ser: o que esse edifício tem a nos dizer hoje? Para que uso ele é mais adequado hoje? Temos de ‘ouvir o edifício’ com ouvidos contemporâneos.”
Essa escuta ativa pode levar a adaptações estruturais que viabilizem novos usos. “Caso contrário, o destino de muitos desses prédios é simplesmente a demolição, para dar lugar a algo novo.”
Próximos passos e cooperação internacional
“Seria maravilhoso reunir equipes com diferentes formações e culturas — estudantes, professores e profissionais do Brasil e do Reino Unido — para trabalhar juntos, trocar experiências e compartilhar visões.”
Atualmente, o professor lamenta a falta de intercâmbio entre os dois países, mas destaca uma iniciativa concreta: há duas vagas abertas para estudantes acompanharem o trabalho de campo em um dos projetos de restauração localizados no Rio de Janeiro:
“Espero que dê certo!”, diz com entusiasmo.
Impressões sobre Liverpool
“Liverpool é uma cidade fascinante — completamente diferente do sul da Inglaterra — muito mais viva e acolhedora.”
Para ele, a antiga função portuária da cidade ainda é perceptível, e a cultura scouse (conjunto de costumes, sotaque, humor, identidade e estilo de vida típicos de Liverpool, na Inglaterra) se manifesta de forma vibrante na comida, na linguagem e nas relações cotidianas.
Do ponto de vista arquitetônico, Wolney destaca os antigos edifícios industriais da região do Baltic Triangle e da Argyle Street, chamando atenção para “a beleza das placas de ancoragem que sustentam as fachadas — cada uma com seu próprio design”.
Por outro lado, lamenta o abandono de muitos imóveis históricos: “É uma pena que tantos edifícios antigos e interessantes estejam desocupados, como o antigo Abbey Cinema, na North Church Street, em Wavertree. Em muitas cidades, um prédio assim seria restaurado e adaptado para novos usos.”

